Saía de casa com o sol ainda a acordar no rosto e com o silêncio exigível para não acordar os que dormiam ainda. O lugar do encontro eram os penedos que viam a ponte de pedra. O Zé já lá estava, na sua pequenez irrequieta e sempre atenta aos movimentos em redor. Um pouco mais tarde, via-se o João, a correr calçada abaixo. Completa a equipa, estava na hora de armar alguma coisa, como era hábito, um hábito tão antigo como os nossos passos.
Ao descermos o Outeiro, sentia o frio cortante do início das manhãs de verão e era necessário resolver o assunto. Não deviam ser ainda sete horas. Ao fundo da rua, via-se uma eira com feno espalhado, que continuaria a secar ao longo do dia, para, com certeza, ser arrumado no palheiro ao fim da tarde. Mas nós estávamos com algum frio e precisávamos de aquecer-nos. Não foi preciso dizer muito para todos percebermos o que era necessário fazer. Entrámos na eira, sentámo-nos encostados ao palheiro, virados para o sol, e acendemos um molhito de feno. Uma das coisas que sempre trazíamos no bolso era uma caixa de fósforos... O fogo, descobertas as suas virtualidades, é o melhor amigo do homem, especialmente se se tem quatro ou cinco anos e se está com frio. Ali ficámos uns minutos, aquecemos as mãos e logo procurámos outras paragens... Não se podia estar muito tempo no mesmo lugar porque todos reconheciam em nós um relativo perigo, especialmente quando andávamos juntos. Apagámos a fogueirinha e voltámos a subir o Outeiro... Queríamos ir para o rio e era habitual que o fizéssemos pelos penedos e não pelo caminho que todos seguiam.
No alto da rua, enquanto o João foi a casa buscar uma cana, eu e o Zé sentámo-nos no muro. As casas, já à época altas, não permitiam o calor do sol. Foi, então, necessário recorrer novamente ao artifício do fogo... Saltámos o muro e da entrada da porta do palheiro conseguimos mais um pouco de feno para aquecermos ao menos as mãos... Assim foi... Não se via ainda gente na rua, pelo que estes actos eram perfeitamente aceitáveis. O João demorava.
De repente, do fundo da rua ouviam-se gritos zangados de homem... Era o Tio Tarola... O palheiro era dele, como dele era a eira do fundo da rua. Percebemos imediatamente que éramos perseguidos... Como que a escondermos a fogueirita, empurrámo-la para a porta do palheiro, no intuito sábio de a apagarmos com os pés... Mas não tivemos tempo. O Tio Tarola já estava muito perto e trazia um rascalho na mão. Fizemos o que muito bem sabíamos... Fugir. Botámos a correr um para cada lado, o Zé para o lado direito e eu rua acima... Quando saltámos o muro, consegui ainda ver a razão do rascalho que o Tio Tarola trazia na mão... Tinha estado a tentar apagar o resto do feno da eira. Mas deve ter visto fumo a sair do palheiro e desatou a correr, deixando consumir-se o feno que estava a secar. Ao chegar ao meio da rua, olhei para trás, sem parar de correr obviamente, e vi o senhor a apagar a fogueirita que deixáramos encostada à porta do palheiro. Ganhávamos tempo.
Sem nada sabermos uns dos outros, procurámos esconder-nos o melhor que pudemos até as coisas acalmarem. Sabíamos, no entanto, que, ao chegarmos a casa, a notícia já lá teria chegado e o humor estaria seguramente em níveis baixíssimos... E isso seria mau sinal.
O nosso relógio era o estômago... Quando o sol já ia bem alto e a hora do almoço do meu pai parecia já ter passado, saí do buraco onde me metera e, a olhar para todos os lados, fui para casa. Afinal a hora de almoço do meu pai tinha-se prolongado devido aos acontecimentos da manhã... Estava à minha espera... Os castigos do meu pai eram terríveis. E este não foi excepção. A pior coisa que podiam fazer-me não era darem-me umas tostas, essas passavam depressa, era ameaçarem-me com a guarda. Tinha um medo enorme à guarda, não sei porquê... Quando entrei na porta, ouvi um "Já chegaste!?". Nem sabia onde me havia de meter... Parei, baixei a cabeça e esperei que chovesse... Mas não. "Esteve aí a guarda a saber de ti! Querem-te levar porque chegaste fogo à eira do Tio Tarola e querias-lhe chegar fogo ao palheiro também! E os outros também vão!" Desatei num choro pegado, perante a imobilidade do meu pai, insensível ao meu enorme sofrimento, antecipando uma perda de liberdade eterna... Depois de lhe rogar que não dissesse aos guardas onde estava, corri para o quarto e tranquei a porta. Só a abri quando a minha mãe me foi levar qualquer coisa para comer.
(Continua...)
Ao descermos o Outeiro, sentia o frio cortante do início das manhãs de verão e era necessário resolver o assunto. Não deviam ser ainda sete horas. Ao fundo da rua, via-se uma eira com feno espalhado, que continuaria a secar ao longo do dia, para, com certeza, ser arrumado no palheiro ao fim da tarde. Mas nós estávamos com algum frio e precisávamos de aquecer-nos. Não foi preciso dizer muito para todos percebermos o que era necessário fazer. Entrámos na eira, sentámo-nos encostados ao palheiro, virados para o sol, e acendemos um molhito de feno. Uma das coisas que sempre trazíamos no bolso era uma caixa de fósforos... O fogo, descobertas as suas virtualidades, é o melhor amigo do homem, especialmente se se tem quatro ou cinco anos e se está com frio. Ali ficámos uns minutos, aquecemos as mãos e logo procurámos outras paragens... Não se podia estar muito tempo no mesmo lugar porque todos reconheciam em nós um relativo perigo, especialmente quando andávamos juntos. Apagámos a fogueirinha e voltámos a subir o Outeiro... Queríamos ir para o rio e era habitual que o fizéssemos pelos penedos e não pelo caminho que todos seguiam.
No alto da rua, enquanto o João foi a casa buscar uma cana, eu e o Zé sentámo-nos no muro. As casas, já à época altas, não permitiam o calor do sol. Foi, então, necessário recorrer novamente ao artifício do fogo... Saltámos o muro e da entrada da porta do palheiro conseguimos mais um pouco de feno para aquecermos ao menos as mãos... Assim foi... Não se via ainda gente na rua, pelo que estes actos eram perfeitamente aceitáveis. O João demorava.
De repente, do fundo da rua ouviam-se gritos zangados de homem... Era o Tio Tarola... O palheiro era dele, como dele era a eira do fundo da rua. Percebemos imediatamente que éramos perseguidos... Como que a escondermos a fogueirita, empurrámo-la para a porta do palheiro, no intuito sábio de a apagarmos com os pés... Mas não tivemos tempo. O Tio Tarola já estava muito perto e trazia um rascalho na mão. Fizemos o que muito bem sabíamos... Fugir. Botámos a correr um para cada lado, o Zé para o lado direito e eu rua acima... Quando saltámos o muro, consegui ainda ver a razão do rascalho que o Tio Tarola trazia na mão... Tinha estado a tentar apagar o resto do feno da eira. Mas deve ter visto fumo a sair do palheiro e desatou a correr, deixando consumir-se o feno que estava a secar. Ao chegar ao meio da rua, olhei para trás, sem parar de correr obviamente, e vi o senhor a apagar a fogueirita que deixáramos encostada à porta do palheiro. Ganhávamos tempo.
Sem nada sabermos uns dos outros, procurámos esconder-nos o melhor que pudemos até as coisas acalmarem. Sabíamos, no entanto, que, ao chegarmos a casa, a notícia já lá teria chegado e o humor estaria seguramente em níveis baixíssimos... E isso seria mau sinal.
O nosso relógio era o estômago... Quando o sol já ia bem alto e a hora do almoço do meu pai parecia já ter passado, saí do buraco onde me metera e, a olhar para todos os lados, fui para casa. Afinal a hora de almoço do meu pai tinha-se prolongado devido aos acontecimentos da manhã... Estava à minha espera... Os castigos do meu pai eram terríveis. E este não foi excepção. A pior coisa que podiam fazer-me não era darem-me umas tostas, essas passavam depressa, era ameaçarem-me com a guarda. Tinha um medo enorme à guarda, não sei porquê... Quando entrei na porta, ouvi um "Já chegaste!?". Nem sabia onde me havia de meter... Parei, baixei a cabeça e esperei que chovesse... Mas não. "Esteve aí a guarda a saber de ti! Querem-te levar porque chegaste fogo à eira do Tio Tarola e querias-lhe chegar fogo ao palheiro também! E os outros também vão!" Desatei num choro pegado, perante a imobilidade do meu pai, insensível ao meu enorme sofrimento, antecipando uma perda de liberdade eterna... Depois de lhe rogar que não dissesse aos guardas onde estava, corri para o quarto e tranquei a porta. Só a abri quando a minha mãe me foi levar qualquer coisa para comer.
(Continua...)
Nostalgico...Mas era mesmo assim.
ResponderEliminarBem escrito o texto.Parabéns.